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Cristalografia e Software Livre

Pesquisadores da área de Materiais do IPEN criam software livre para estudo de estruturas cristalinas

Fonte: Blog Código Aberto - Sessão Link do Estado de S. Paulo

Que tal aprender sobre estruturas cristalinas? Com software livre, é claro!

Por CCSL
Centro de Competência em Software Livre da USP


Comparação de modelo físico com imagem gerada pelo primeiro software cristalográfico, o ORTEP, em 1965 (Fonte: Felknor, 1965)

Por Fernando Bardella Ricardo Leal Neto*

Haveria algo em comum entre flocos de neve, a fiação elétrica de cobre, as rodas de liga leve de seu automóvel e diamantes ostentados em joias?

As formas geométricas externas de cristais naturais, como flocos de neve, quartzo, pirita, hematita e tantos outros sempre aguçaram o intelecto humano. Não por acaso, o próprio termo cristal, advindo do grego krustallos, significa rocha de gelo. Mas foi apenas nos primórdios do século XVII que as formas geométricas externas dos cristais foram atribuídas a um arranjo regular de pequenos "glóbulos” que os constituem… Isso ocorreu a partir da observação de flocos de neve, cujas formas geométricas hexagonais intrigaram e foram objeto de estudo do matemático e astrônomo alemão Joannes Kepler, mais conhecido por suas leis do movimento planetário.

No século XX, descobriu-se que não apenas em cristais naturais, mas em muitos outros materiais naturais ou sintéticos, os átomos constituintes estão regularmente organizados, independentemente da forma externa do corpo em questão. A essa organização interna dá-se o nome de Estrutura Cristalina.

Fios de cobre, barras de aço de construção, sal de cozinha, ouro, prata e pedras preciosas, talheres metálicos e xícaras de porcelana são todos cristalinos, o que não quer dizer que tudo que é sólido é cristalino: o vidro da janela de nossas residências e peças de plástico em geral não são cristalinos, ou seja, os átomos que os constituem não estão regularmente organizados.

A característica central que constitui a organização cristalina é a periodicidade, ou seja, há um padrão de repetição dos átomos ou moléculas que é encontrado em toda a estrutura. Desde a época de Keppler, cientistas e filósofos têm se perguntado – quantas são as possíveis configurações de átomos organizados no espaço tridimensional? Há um limite para isso? Sim! Foi em meados do século XIX que o físico francês Auguste Bravais determinou matematicamente que apenas 14 redes espaciais bastariam para definir os modos de repetição em três dimensões. Você provavelmente se surpreenderá com a próxima afirmação: são 14 redes espaciais ou cristalinas, mas há um número muito maior de estruturas cristalinas conhecidas, que em tese é ilimitado. Não é tão difícil entender o porquê: as redes definem o modo de repetição, mas não aquilo que será repetido! Para facilitar o entendimento, vamos analisar o que ocorre em duas dimensões, ou seja, algo como uma folha de papel, no exemplo abaixo:



No exemplo, temos à esquerda uma rede de pontos, definindo as posições onde se dará a repetição. As redes cristalinas definem essas posições no espaço. No primeiro caso, o círculo branco será repetido em cada posição da rede. No segundo caso, dois círculos, um branco e outro preto, serão repetidos. Na ilustração, os círculos brancos foram situados sobre os pontos da rede; poderia ser o contrário, mas qualquer que seja o posicionamento dos círculos em relação aos pontos da rede, a mesma repetição deve ser obedecida. A ideia é que os dois arranjos de círculos são distintos, porém gerados a partir de uma rede em comum de pontos. A diferença entre os dois arranjos reside naquilo que está sendo repetido. Essas "unidades” ou temas de repetição são designadas de "motivo” ou "base” e esta é a essência expressa pela "equação” da figura: Rede + Motivo = Cristal.

Os motivos podem ser formados por apenas um átomo ou grupo deles; quanto maior o número de átomos que integram o motivo, mais complexa será a estrutura do cristal. Assim, de acordo com o material cristalino, temos motivos os mais diversos, ou seja, temos muitas estruturas cristalinas, mas apenas 14 redes espaciais (padrões de repetição). Por exemplo, no sal de cozinha ou cloreto de sódio (formula química NaCl), o motivo é formado por um átomo de sódio (Na) e outro de cloro (Cl) dispostos lado a lado, conforme figura abaixo ("b”). A sua rede espacial é cúbica de face centrada ("a”). A célula unitária do NaCl, que representa o cristal ("d”), está ilustrada em ("c”).



Exploração de estruturas cristalinas através de recursos de visualização do CrystalWalk: (a) pontos de rede; (b) motivo; (c) célula unitária; (d) cristal. Fonte: Bardella (2016d) (adaptado).

E por que tanto interesse em conhecer a estrutura cristalina de materiais? Muitas propriedades físicas e químicas dos materiais são influenciadas pela sua estrutura cristalina. Engenheiros (principalmente os engenheiros de materiais), físicos, químicos, biólogos e farmacêuticos são exemplos de profissionais que estudam estruturas cristalinas. Parte desse estudo depende da representação física ou gráfica dessas estruturas, e modelos físicos muito comuns e simples são feitos com bolas de isopor e varetas. Há programas dedicados à cristalografia (o estudo dos cristais), mas o modo como tais representações são criadas exige um conhecimento muito específico, que só estudiosos de cristalografia (os cristalógrafos) dominam: estudantes de engenharia e ciência dos materiais têm dificuldade em assimilar o conteúdo correspondente. Outro aspecto relevante é que esses programas tradicionalmente possuem licenças de uso e distribuição comerciais restritivas, sendo distribuídos apenas no formato binário sem o código-fonte e bastante custosos.

Com o espírito de oferecer a estudantes e professores uma alternativa, pesquisadores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), situado no campus da Universidade de São Paulo, se propuseram a desenvolver uma ferramenta didática destinada à criação e à visualização de estruturas cristalinas num ambiente tridimensional interativo. De tecnologia totalmente nacional, o projeto batizado de CrystalWalk preconizou os princípios do software livre, da acessibilidade e da democratização do conhecimento em seu processo de desenvolvimento, oferecendo acesso irrestrito ao código-fonte e a liberdade para estudá-lo, modificá-lo e desenvolvê-lo.

Por meio do CW, o usuário cria estruturas cristalinas seguindo um processo passo a passo. Uma vez criada, o usuário pode interagir de várias maneiras com a imagem do cristal. Foram adotadas duas estratégias para facilitar o entendimento de estruturas cristalinas: a primeira consiste em diversos recursos de visualização e interação, de modo que o usuário tenha uma experiência multifacetada com as estruturas criadas; a segunda, denominada "narrativa didática”, é uma ferramenta com a qual o usuário pode expressar sua criatividade didática por meio de sequências de visualização (vídeos) que podem ser compartilhadas, recurso muito útil para professores, por exemplo. Também foram incorporadas outras funcionalidades didáticas, tal como o suporte à interação avançada e às tecnologias de interface de Realidade Virtual (Oculus Rift, Cardboard, Leap), suporte à impressão 3D e plataforma de publicação online. O CrystalWalk não precisa ser instalado no computador do usuário, tampouco requer qualquer cadastro para o acesso, bastando digitar na barra de endereço do navegador a url http://cw.gl. Além de computadores desktop, o acesso pode se dar também por meio de tablets e smartphones. Qualquer que seja o dispositivo, ele deverá ser compatível com os recursos HTML5/WebGL, como os de última geração.

O CW foi desenvolvido na tese de doutorado de Fernando Bardella, defendida em julho de 2016, orientada pelo Dr. Ricardo Mendes Leal Neto, do Centro de Ciência e Tecnologia de Materiais (CCTM), do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN). O código-fonte do projeto é disponibilizado integralmente através do repositório colaborativo http://github.com/gvcm sob os termos da licença MIT.

O acesso irrestrito ao conhecimento, a reprodutibilidade e a transparência são pilares fundamentais da atividade científica. Nesse sentido, o software livre é (ou deveria ser) peça essencial dessa atividade nos dias atuais. Com o CrystalWalk, esperamos oferecer nossa contribuição para construção de um contexto para o desenvolvimento da ciência cada vez mais aberto e colaborativo.

* Fernando Bardella é pós-doutorando e pesquisador do IPEN; Ricardo Leal Neto é pesquisador e professor do IPEN-USP




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