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Césio 137: Goiás tenta apagar a memória do acidente radioativo

Ignorando projetos de museu e mudando nomes das ruas que foram cenário da tragédia e dos órgãos públicos criados em função dela, Goiás tenta apagar a memória do maior acidente radioativo do mundo fora de usinas nucleares

Fonte: Correio Braziliense

Diferentemente de outros cenários de tragédias, Goiás nada faz para manter viva a memória do acidente com o césio 137. Passados quase 32 anos, nem o governo estadual, nem a prefeitura de Goiânia, onde houve a contaminação, tomaram medidas para contar aos seus cidadãos a história do maior acidente radioativo do Brasil e o maior do mundo ocorrido fora de usinas nucleares. Ao contrário. O Estado tem tentado fazer com que o episódio caia no esquecimento, mudando os nomes das ruas e de órgãos públicos e construindo prédios em lugares que serviram de palco para essa história.

Diversas formas de silenciamento para suprimir a memória dos moradores de Goiânia sobre o acidente são apontadas em um estudo realizado pela Universidade Federal de Goiás (UFG). A pesquisadora Célia Helena Vasconcelos concluiu que os fatos históricos vêm sendo gradativamente retirados da narrativa goianiense. Ela cita alterações em nomes de ruas, como a Rua 26-A, no Setor Aeroporto, onde começou a contaminação após a abertura da cápsula contendo césio 137, e hoje se chama Rua D. Francisca de Costa Cunha Dom Tita (veja Rota da contaminação — e do silenciamento).

Realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, da Faculdade de Letras da UFG, o trabalho de Célia — "Césio-137, trinta anos depois: silenciamento discursivo de uma tragédia” (leia Para saber mais) — destaca vários exemplos de medidas que resultam na tentativa de silenciar a tragédia. "Renomearam a Rua 57, a Rua 26-A. Para encontrá-las, hoje em dia, é preciso ter alguém que conheça a história. E a cartada final foi renomear a SuLeide, tirando o nome de Leide das Neves da superintendência. Ela é um símbolo, um ícone, um signo, o nome de uma criança que morreu no acidente. Silenciar o órgão é silenciar as vítimas, os radioacidentados”, denuncia pesquisadora ao Correio Braziliense

No estudo, Célia também destaca a construção de um Centro de Convenções no local onde foi encontrada a cápsula de césio 137, ignorando por completo a história do acidente radioativo. "Não foi um silenciamento arbitrário, como na época da ditadura militar. Ele veio vagarosamente, sorrateiramente”, lamenta a pesquisadora.(leia a entrevista completa abaixo)

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Passadas mais de três décadas, não há consenso sobre o número de vítimas do césio 137 em Goiânia. Oficialmente, quatro pessoas morreram por exposição excessiva à radiação, mas a quantidade de pessoas contaminadas ainda provoca discussão. O governo federal reconhece 120. O governo de Goiás fala em um número quase 10 vezes maior: 1.032. Entidades que representam as vítimas dizem ser 1,4 mil, sendo que houve 66 mortes. Em termos de contaminação, o desastre de Goiânia perde apenas para o da Usina Nuclear de Chernobil, na antiga União Soviética, em 26 abril de 1986.

A diferença nos dados ajuda a corroer a memória da tragédia, assim como as mudanças nos nomes de ruas e de órgãos ligados ao episódio. É o que reforça o procurador da República Ailton Benedito, com atuação ativa no Ministério Público Federal em Goiás (MPF/GO) em nome das vítimas do césio 137. "De fato, o acidente com o césio 137 e suas consequências constituem uma marca indelével no Estado de Goiás e do povo goiano. Também tenho essa percepção de uma tentativa de ‘apagamento” dessa história”, reconhece Ailton ao Correio.

O papel do MPF/GO é determinante para condenações e benefícios conquistados no caso do acidente radioativo. Ainda em 1987, o órgão denunciou quatro médicos — dois deles radioterapeutas — e um físico hospitalar por homicídio e lesão corporal culposos (sem intenção de matar ou de provocar danos). Nos anos 2000, o órgão direcionou-se às vítimas. Em 2004, fixou o piso de um salário mínimo como valor da pensão federal. Depois de mais de 500 procedimentos administrativos para assegurar esses direitos até 2010 e sem resposta do poder público, o MPF/GO ajuizou ação civil pública contra a União e o estado de Goiás. O objetivo era resolver o impasse na concessão de pensão federal e acelerar as perícias médicas.

Símbolo

A Superintendência Leide das Neves Ferreira (Suleide), criada em 1987, foi renomeada para Fundação Leide das Neves (Funleide) em 1999 e, depois, desmembrada em duas unidades: o Centro de Assistência aos Radioacidentados (Cara) e o Centro de Excelência em Ensino, Pesquisa e Projetos Leide das Neves Ferreira, em 2011. Aos 6 anos, a menina Leide das Neves foi a primeira pessoa a morrer pela contaminação do césio-137. Desde então, como reforçou Célia, ela se tornou um símbolo da tragédia.

Pesquisa e reportagem

A pesquisadora Célia Helena Vasconcelos apresentou o trabalho de pós-graduação em 29 de fevereiro de 2019. Com 171 páginas, o estudo faz várias menções à série publicada pelo Correio Braziliense nos 30 anos da tragédia nuclear goiana. Com textos de Natália Lambert e Guilherme Goulart, a reportagem investigativa "Césio 137: 30 anos de um inimigo invisível” (foto) foi publicada entre 3 e 8 de setembro de 2017, com um hotsite. Em junho de 2018, a série ganhou o VI Prêmio República, da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Ela pode ser acessada emhttps://especiais.correiobraziliense.net.br/cesio137. O trabalho de Célia pode ser conferido na íntegra no repositório da Universidade Federal de Goiás, emhttps://repositorio.bc.ufg.br.

Balanço

66
Total de mortes relacionadas ao césio, segundo levantamentos de sindicatos, associações e do Ministério Público de Goiás
1,4 mil
Quantidade de contaminados, de acordo com as mesmas entidades e órgãos

Entrevista - Célia Helena Vasconcelos

Qual é a relação da senhora com o césio 137?
A minha história com o césio começa com o acidente. Naquele ano, 1987, eu estava gestante da minha segunda filha e morava a 150m do ferro-velho do Devair (Alves Pereira, na Rua 26-A). Vivenciei de perto e com muita inocência, assim como a maioria das pessoas ali. Não só pela idade, mas porque era uma coisa absolutamente nova. Não só para a gente, mas para todo o Brasil. Acho que nem a Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear), que lidou com a problemática, conhecia os procedimentos para um acidente daquela proporção.

O fato de estar grávida provocou pânico ou, realmente, não tinha informação sobre o perigo da radiação, como aconteceu com as pessoas que trabalharam com os rejeitos do material radioativo?
Era inocente. Não tínhamos medo de passar pelas ruas interditadas. A gente passava, assim como os jornalistas entravam e faziam as suas reportagens, o policiamento, enfim. O fato de estar gestante era mais problemático. Eu estava no meio daquele vulcão e, o tempo todo, eles tinham de ficar monitorando. Era incômodo para mim e para eles, que tinham de ir duas vezes lá ao dia, no mínimo, para ver se eu não estava contaminada. A inocência era tão grande que eu permaneci lá, tive a minha filha lá.

Antes da dissertação, a senhora havia feito outro tipo de trabalho com o césio?
Na realidade, não pensava no assunto. Precisava fazer o TCC (para a graduação de letras) — retornei para os estudos bem tarde, depois dos 40 — e fui passando pela Rua 57, um dos locais onde o Roberto (Alves) levou a cápsula, em um primeiro momento, que era onde eu residia… Vi um grafite na parede. Ele conta a história com minúcias. É um grafite, mas, quando você olha, ainda mais eu, que trabalho com linguagem, você vê toda a história. E, muitas vezes, reagindo à história da época, contestando. Achei interessante e fiz o meu TCC. Depois, entrei para o mestrado de linguística.

E como foi a escolha do tema para o mestrado?
O meu propósito inicial não era falar de silenciamento, mas trazer a história do césio por intermédio do grafite, uma forma de arte que aprecio bastante, pois é abrangente e popular. Eu tentei ir em busca de outros grafites. Rodei Goiânia e não encontrei. Fui para Abadia de Goiânia, nossa vizinha, e nada também. Não existia nada. Daí, agendei uma visita à Cnen, onde está o lixo atômico. Quando cheguei lá, vi que tinha um salão que recebe os visitantes e, nesse salão, tem alguma coisa que fala da história (do acidente), mas o objetivo principal é mostrar a parte econômica e de que ele não tem nenhuma periculosidade. Mesmo ali, vi que havia um silenciamento. E veio a ideia da dissertação.

A senhora percebeu que, desde o início, a tragédia do césio começou a ser esquecida?
De certa forma, dá para pensar que o silenciamento foi encomendado. Nas entrelinhas, não há nada que fala sobre o césio naqueles lugares que protagonizaram a história. Não existe uma plaquinha, nada. Tive a comprovação disso pelo meu trabalho. Foi muito estranho, para mim mesma.

E como acontece esse silenciamento?
Não foi um silenciamento arbitrário, como na época da ditadura militar. Ele veio vagarosamente, sorrateiramente. O nome da Leide (das Neves) pareceu o golpe final (ao mudarem a nomenclatura da Superintendência Leide das Neves, a Suleide) para Centro de Assistência ao Radioacidentado (Cara). No antigo IGR (Instituto Goiano de Radioterapia), de onde o Roberto e o Wagner (Pereira) tiraram o aparelho (de raio x, com a cápsula de césio) e levaram para a Rua 57, ali, hoje, é o Centro de Convenções. Deveria ter ao menos uma plaquinha, alguma coisa que mostrasse onde tudo começou. Mas não há. No Estádio Olímpico, para onde as pessoas iam para fazer medições e, depois, ficaram confinadas para a limpeza deles, também foi reestruturado. Na Rua 57, em 1993, o Siron Franco fez o projeto para que ali tivesse um museu, um memorial que virasse ponto turístico para informação, para conhecimento, mas não há nada. Tanto lá quanto na Rua 26-A, se você perguntar para um jovem que mora ali, terá uma grande chance de ele não saber nada do que houve na cidade.

Qual é a importância do Ministério Público, da Justiça e de pesquisadores para que a tragédia do césio 137não seja esquecida?
Para iniciar, acho que a construção do prometido memorial na Rua 57 seria bem-vinda. Preservar um dado histórico é muito importante. Até para prevenir futuras tragédias. Ainda hoje continuam descartando aparelhos daquele tipo sem vigilância ou fiscalização, como aconteceu em 2019 em Alagoas (em 22 de janeiro, a Vigilância Sanitária recolheu uma cápsula de raio x em um ferro-velho de Arapiraca).

Esse silenciamento, portanto, tem a ver com uma tentativa de evitar que as pessoas atingidas diretamente pela exposição ao material radioativo busquem direitos e indenizações?
Para as pessoas que estão diretamente envolvidas, sim. Na realidade, elas já foram tanto atrás dos direitos delas e, segundo as reportagens, não encontram. E, conversando com essas pessoas, a gente percebe que nem mesmo encontram os medicamentos. São vítimas do césio, do descaso do governo e do silenciamento. É uma parte da sociedade completamente silenciada. Você não ouve falar deles. Hoje, elas não querem mais nem participar de reportagens, pois nada se resolve e traz aquela dor de volta.

E o que precisa ser feito?
Deveriam ter locais para estudo, pesquisa, até para as pessoas radioacidentadas. Deveria ter, até hoje, o monitoramento dessas pessoas. O silenciamento vem de toda a sociedade, de parte do governo, da população afetada, das pessoas que vivenciaram aquilo. Quem foi diretamente atingido perdeu não somente as casas, mas a identidade, a vida, a família. E o sossego para o resto da vida. O objetivo do meu trabalho é para que seja um grito. É a nossa história, é feia, não é bonita, foi dolorida, mas é a nossa história. Não pode, simplesmente, silenciá-la, apagá-la, tirá-la do contexto, como está sendo feito. Renomearam a Rua 57, a Rua 26-A. Para encontrá-las, hoje em dia, é preciso ter alguém que conheça a história. E a cartada final foi renomear a Suleide, tirando o nome de Leide das Neves da superintendência. Ela é um símbolo, um ícone, um signo, o nome de uma criança que morreu no acidente. Silenciar o órgão é silenciar as vítimas, os radioacidentados.

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