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O maniqueísmo nuclear

Artigo de Silvia Maria Velasques de Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Biociências Nucleares (SBBN), para o Jornal da Ciência

Fonte: Jornal da Ciência

Em "Diários da presidência 1995-1996”, memórias lançadas recentemente pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), há, na página 529, o registro do dia 5 de abril de 1996: "fui ao IPEN (Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares), aqui na USP (Universidade de São Paulo). Encontrei o Marcelo Damy (físico e professor paulista, pioneiro da energia nuclear no Brasil), que eu não via fazia quarenta anos. No discurso rápido que fiz, mencionei que eu tinha sido muito contra o reator atômico da USP, nós achávamos que ele iria explodir (…). Era uma luta entre os físicos e quem teve razão foi o Marcelo Damy. Visitei tudo o que está feito lá, o reator experimental, e vi também que recuperamos as verbas em 94, 95 e, sobretudo, em 96”. E conclui FHC: "Pediram um síncrotron (acelerador de partículas com aplicação em pesquisas físicas, biológicas e nanotecnologia) e eu sou favorável também. Vamos ver se a gente viabiliza esse sincrotron, são só 5 milhões de dólares (o Laboratório Nacional da Luz Síncrotron foi inaugurado em 1997, em Campinas)”.

Essa "luta ente os físicos” perdura, e envolve também os engenheiros. Se um presidente da República e professor universitário tem medo de um reator de pesquisas porque acha que "ele pode explodir”, qualquer brasileiro pode sentir o mesmo. Falo sentir e não pensar porque medo não é racionalizado. Minha hipótese sobre a divulgação da energia nuclear no Brasil é que não há a necessária isenção: apoiadores, operadores de usinas nucleares para geração de eletricidade e usuários das demais aplicações (Medicina, Indústria e Pesquisa) propagam os benefícios sem explicar os riscos associados às respectivas tecnologias enquanto que os ativistas antinucleares, ao contrário, divulgam os riscos de forma isolada e, na maioria das vezes, sem compará-los com problemas afetos às tecnologias alternativas.

Se físicos e engenheiros de um lado, e ativistas e políticos de outro, confundirem a opinião pública sobre as diferenças básicas das tecnologias nucleares, omitindo o que não lhes convém, diversas pesquisas para melhorar a saúde dos brasileiros, especialmente em Radiobiologia, Radiofarmácia e Medicina Nuclear, poderão ser afetadas, prejudicando toda a sociedade.

Em 2015, diversos eventos paralelos, científicos e/ou políticos, a maioria financiados pelo Estado, aconteceram com grupos homogêneos que não contaram com a admissão do contraditório. Nos dias 27 e 28 de outubro de 2015, realizou-se no Auditório INTERLEGIS, do Senado Federal, o Seminário Internacional "Usinas Nucleares-Lições da Experiência Mundial”, promovido pela Comissão de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT), coordenada pelo Senador Cristovam Buarque.

Os discursos foram dirigidos a reforçar o Projeto de Lei do Senado (PLS) 405 de 2011, de autoria do senador Cristovam Buarque (PDT-DF), e atualmente na Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle. A ementa propõe suspender, pelo prazo de trinta anos, em todo o território nacional, a construção de novas usinas termonucleares com o argumento da probabilidade de ocorrência de acidentes nucleares.

A mesa "As consequências sociais e sanitárias dos acidentes nucleares” começou com Naoto Kan (ex-primeiro ministro do Japão em 2011 e responsável pelo gerenciamento da crise do acidente nuclear de Fukushima), em depoimento por videoconferência. Ele aconselhou os brasileiros a desistirem dos reatores nucleares. Vladimir Shevtsov (Bielorrússia) e Alfredo Pena-Veja (França) abordaram suas pesquisas, respectivamente sobre Chernobyl na Ucrânia e Fukushima no Japão sem comentar dados de publicações internacionais como o Comitê Científico das Nações Unidas para Efeitos das Radiações Atômicas (www.unscear.org), órgão do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), formado por cientistas de vários países. Emiko Okuno, física da USP, ao relatar o acidente com Césio-137 em Goiânia em 1987, citou dados do relatório oficial publicado pela Agência Internacional de Energia Atômica (www.iaea.org).

Acompanhando pela internet, enviei por e-mail a seguinte pergunta aVladimir Shevtsov: "por que não comentou os dados sobre exposições do público publicados pelo United Nations Scientific Committee on Effects of Atomic Radiation (UNSCEAR)? Não os considera confiáveis ou os desconhece?O palestrante não mencionou o UNSCEAR, talvez de fato não o conheça, e criticou a Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA) ao comentar que as estatísticas da Organização Mundial de Saúde (OMS) são controladas pela IAEA, a qual defende os interesses dos países do Tratado de Não Proliferação (de Armas Atômicas).

Minha segunda pergunta, formulada ao representante da França, foi: "por que não comentou na sua palestra o apoio da Agência Internacional de Energia Atômica (IAEA) em face das convenções de segurança entre os países membros? Todo o apoio logístico, técnico e financeiro nos dois acidentes nucleares não foram sequer citados. Por que não contextualizou seus projetos de pesquisas em relação a centenas de outros também publicados por vários países? Tem restrições aos outros artigos ou abordagens? Caso sim, quais?”.

Quem respondeu foi a física nuclear, do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), na França, Monique Sené, que justificou que, embora as publicações da IAEA devam ser lidas, não as mencionou porque abordara apenas os problemas da França. O pesquisador Alfredo Pena-Veja, a quem a pergunta fora dirigida, respondeu ironicamente que não compara suas pesquisas com outras publicações porque "o pessoal da área nuclear só tem certezas e seus estudos não têm incertezas".

Na mesa "Da mineração de urânio às usinas nucleares e aos rejeitos radioativos, perspectivas e alternativas”, Eduardo Souza Motta, membro da Associação dos Fiscais de Radioproteção e Segurança Nuclear (AFEN), reclamou que problemas como a mineração de urânio e a cadeia de enriquecimento do combustível nuclear não tinham sido abordados. Reivindicou, também, a discussão sobre reatores dedicados para produção de radioisótopos usados em medicina nuclear. Segundo ele, estes reatores também devem ser justificados, uma vez que, ao usar urânio enriquecido, geram rejeitos radioativos e podem provocar acidentes. É possível que, aumentando o leque de problemas, o fiscal nuclear esperasse valorizar a atuação da AFEN.

Francisco Whitaker, membro da Comissão Justiça e Paz, coordenador da Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares e um dos organizadores do seminário, respondeu que a proposta fugia ao escopo do evento porque o título era "Usinas Nucleares”, mas poderia acontecer em outra oportunidade. Entretanto, alguns minutos depois, o próprio Whitaker, mencionou que "na Bolívia há um projeto de reator para produção de radioisótopos e isto é um verdadeiro Cavalo de Tróia, pois por onde passa boi passa boiada e logo irão querer colocar uma usina nuclear na Bolívia”.De fato, no dia seguinte, a Globo.com publicou o anúncio do presidente boliviano sobre a construção até 2020 de complexo nuclear com cíclotron, irradiador gama e reator nuclear de pesquisas com tecnologia da estatal russa ROSATOM e aporte argentino, totalizando 300 milhões de dólares.

Radiofármacos são fabricados com radioisótopos que marcam quimicamente uma molécula-vetor (fármaco) para atingir um órgão ou tecido em estudo ou tratamento. Os radioisótopos são produzidos em reatores nucleares dedicados (de baixa potência) ou em cíclotrons (aparelhos que aceleram íons em direção a um alvo definido para produção do radionuclídeo de interesse).

Fármacos marcados com Tecnécio-99m, a partir do decaimento radioativo do Molebdênio-99m (matéria-prima produzida em reator), são usados em exames cardiológicos e neurológicos, entre outros. Para tratamento de câncer, moléculas são marcadas com outros radioisótopos também produzidos em reatores dedicados: Samário-153 (metástases ósseas), Lutecio-177 (tumores neuroendócrinos), Ytrio-90 (linfomas e tumores hepáticos) ou Iodo-131 (hipertireoidismo e carcinoma diferenciado da tireóide).

Para suprir a demanda mundial de Molebdênio-99m, há apenas sete reatores em operação (Canadá, Bélgica, África do Sul, Holanda, França, Argentina e Austrália), seis com mais de 40 anos em atividade e que serão brevemente desativados, três deles entre 2015 e 2018. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) priorizou o projeto do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), gerenciado pela CNEN, devendo ser construído em um terreno cedido pela Marinha do Brasil em Iperó, interior do estado de São Paulo. Foram definidas três funções principais: (1) produção de radioisótopos, (2) produção do combustível nuclear a partir da irradiação de materiais para atender ao programa nuclear brasileiro e (3) fornecimento de feixes de nêutrons para pesquisa científica básica e aplicada.

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 recepcionou o regime de monopólio, exercido pela CNEN. Por meio da Emenda Constitucional nº 4, de 8 de fevereiro de 2006, o monopólio foi parcialmente quebrado para radiofármacos de meia-vida física inferior a 120 minutos. De quatro cíclotrons operados pela CNEN em 2010, o país saltou para 14 cíclotrons, adicionando empresas privadas ou centros universitários que produzem Fluor-18 usado em tomografias por emissão de pósitron único (PET). Mesmo assim, o país está atrasado em dezenas de anos em relação ao primeiro mundo em pesquisas e uso médico dos radiofármacos. Não há recursos suficientes para promover a energia nuclear e, simultaneamente, fiscalizar seus operadores. A criação da Agência Nacional de Segurança Nuclear permitiria disciplinar esse conflito de interesses. Contudo, o respectivo Projeto de Lei está parado na Casa Civil da Presidência da República desde 2012.

Em 1996, FHC decidiu que o projeto do sincrotron, orçado à época em cinco milhões de dólares, era importante e deveria prosseguir. Foi inaugurado em Campinas um ano depois. O RMB, orçado em 2013 em quinhentos milhões de dólares, já obteve Licença Prévia do IBAMA e a Aprovação de Local da CNEN. Está em andamento o detalhamento do projeto de engenharia realizado pelo INVAP (empresa argentina). A operação do RMB, inicialmente prevista para 2016, foi adiada para 2021 e, segundo a CNEN, "depende da regularidade de investimentos do Governo Federal”.

A segurança dos projetos nucleares estratégicos começa pela solução de conflitos de interesse dentro do Governo Federal e de seus agentes. Por outro lado, tanto os cientistas nacionais quanto os visitantes internacionais devem divulgar suas pesquisas sobre os efeitos biológicos das radiações ionizantes sem valorizar isoladamente aspectos favoráveis ou desfavoráveis. Sem independência intelectual e ética, ativistas, políticos, fiscais nucleares, pesquisadores ou operadores, não superarão o maniqueísmo nuclear. Grupos com interesses antagônicos, alguns até ambivalentes (baseados no equívoco de que "os fins justificam os meios”), insistem em polarizar a opinião pública em iniciativas isoladas que não contribuirão para o diálogo necessário para se estabelecer uma legislação coerente e compatível com os interesses da sociedade brasileira.

"O juízo bom nãoprovém daqueles aos quais se fez o bem. Foram osbonsmesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu” (Nietzsche, Genealogia da Moral, primeira dissertação, § 2).

 

* A equipe do Jornal da Ciência esclarece que o conteúdo e opiniões expressas nos artigos assinados são de responsabilidade do autor e não refletem necessariamente a opinião do jornal

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