Fonte: Folha de S. Paulo
O governo Jair Bolsonaro tem mantido
conversas com entidades científicas e setores da indústria com o objetivo de
viabilizar a adoção em escala comercial da tecnologia de irradiação de
alimentos para o mercado interno e para exportação.
As conversas são
lideradas pelo Gabinete de Segurança Institucional e ocorrem desde a publicação
da resolução número 16, de 24 de outubro de 2019, que criou um grupo técnico
para discutir "a promoção do tratamento de alimentos e materiais com tecnologia
nuclear”.
Em resumo, a técnica
prevê que um alimento ou insumo seja colocado em uma máquina blindada conhecida
como irradiador e submetido a uma dosagem específica de radiação ionizante. Os
principais objetivos são eliminar parasitas e retardar o amadurecimento ou
brotamento do alimento, prolongando assim sua vida útil.
Entre os planos em
discussão pelo grupo técnico está a instalação de plantas industriais com
irradiadores em pontos estratégicos do país, para uso em alimentos —ou com
propósitos múltiplos, para diminuir os custos.
Uma segunda fase das
conversas, a ter início neste ano, prevê a assinatura de acordos bilaterais em
que a irradiação é pré-condição para a exportação dos alimentos.
A irradiação de alimentos
é regulamentada no Brasil pela Resolução n. 21 da Anvisa, de 2001, e pela
Instrução Normativa n. 9 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
(Mapa), de 2011. Ambas permitem o uso de três tipos de irradiação: isótopos
radioativos (cobalto-60 emissor de raios gama); elétrons acelerados e raios-X.
A utilização do radioisótopo césio-137 é praticamente vetada no Brasil mas
permitida em outros países.
"No Brasil, a maioria dos
pesquisadores apoia a instalação de aceleradores de elétrons, porque é muito
simples: cortou a força elétrica, não tem radiação nenhuma nem problemas de
resíduo radioativo”, afirma Thiago Mastrangelo, do Laboratório de Irradiação de
Alimentos e Radioentomologia do Centro de Energia Nuclear na Agricultura
(Cena), da USP em Piracicaba (SP).
A Nuctech, da China, a
Rosaton, da Rússia, e a Fraunhofer, da Alemanha, manifestaram interesse em
trazer seus irradiadores com tecnologia de feixe de elétrons para o mercado
brasileiro.
A estatal Rosaton
encomendou um estudo para avaliar tanto a instalação de uma planta quanto o
fornecimento do serviço de irradiação.
Um dos principais
fabricantes de aceleradores de elétrons no mundo, a Nuctech disse ter mantido
"conversas políticas”, sem dar detalhes.
Já o foco do instituto de
pesquisa Fraunhofer é a aplicação de feixe de elétrons sobre sementes com o
objetivo de eliminar patógenos como alternativa ao "tratamento químico”, com
uso inclusive na agricultura orgânica.
"Estamos trabalhando
junto com produtores de sementes, universidades e investidores. O Brasil é de
interesse particular para nós nesse planejamento devido à grande importância da
indústria da agricultura e o alto nível de disposição para a inovação”, afirmou
Ines Schedwill, chefe de marketing do Fraunhofer, em Dresden (ALE).
O Brasil possui
tecnologia de irradiação desde a década de 1970, mas sua aplicação comercial em
alimentos para o mercado interno é limitada a pimentas, condimentos e temperos,
além de rações para animais.
A Sterigenics, com sede
nos EUA, detém hoje o monopólio da irradiação no Brasil com uma planta
instalada em Jarinu (SP) com irradiadores de cobalto e de elétrons.
O Cena possui dois
irradiadores com fontes de cobalto-60 e um raio-X da Americana RadSource para
uso científico e/ou de baixa escala comercial.
Já o Ipen (Instituto de
Pesquisas Energéticas e Nucleares) tem um acelerador de elétrons para uso em
pesquisa e um irradiador Multipropósito de cobalto-60 para uso semi-industrial.
O principal empecilho à
disseminação do uso da irradiação no Brasil é o custo —a instalação de uma
planta moderna custa cerca de R$ 20 milhões, incluindo equipamento e
infraestrutura mas não a logística. Daí o interesse em abrir o mercado para as
estrangeiras e envolver o setor produtivo de grande porte nas conversas.
"É uma técnica boa que,
se bem aplicada, vai trazer vantagens para o Brasil no sentido de eliminar
barreiras comerciais e de aumentar a exportação”, afirma o pesquisador Murillo
Freire, da Embrapa Agroindústria de Alimentos.
"O Brasil precisava de um
irradiador em cada estado, porque é um país de dimensões enormes. Mas não tem
quem invista de fato, porque as pessoas têm medo ou desconhecem. E é um negócio
que dá dinheiro, o retorno é de um ano para um investimento de R$ 12 milhões a
R$ 15 milhões”, afirma Anna Lucia Villavicencio, pesquisadora do Centro de
Tecnologia das Radiações do Ipen.
Nesse sentido, um
irradiador de elétrons é visto como mais indicado pelos pesquisadores. O maior
mercado importador de frutas brasileiras, por exemplo, é a Europa, que vê com
ressalvas o uso de radioisótopos, mas aceita melhor a radiação por feixe de
elétrons ou raios-X, segundo Mastrangelo.
Outro problema é
percepção do público, que identifica o uso de energia nuclear com acidentes
como o que envolveu a manipulação de Césio-137 em Goiânia (1987), ou ainda
Chernobil (1986)
"Falta conscientização do
público em geral. Criou-se uma ideia de que produto irradiado é produto
radioativo. Mas a irradiação não torna o produto radioativo. Em outros países,
muitos preferem o produto irradiado porque sabem que é mais seguro”, diz
Freire. "O esforço é de quebrar esse paradigma, levar a técnica ao conhecimento
de todos. Ela tem vantagens e desvantagens e ela não serve para tudo. Então tem
que saber direitinho onde você vai aplicar e com que finalidade para você ter
vantagem com isso.”
"É mais seguro que o
orgânico, que utiliza adubo natural, que é cheio de bactérias e
micro-organismos patogênicos”, afirma Villavicencio.
A OMS (Organização
Mundial da Saúde), a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a
Agricultura) e a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) consideram que
a tecnologia de irradiação de qualquer alimento até a dose de 10 kGy
(quilo-Gray) não representa risco toxicológico e é nutricionalmente adequada,
além de ser uma opção de combate ao desperdício e à escassez de alimentos.
No entanto, o tema
continua controverso.
A Alemanha, por exemplo,
não permite a irradiação de alimentos porque o consumidor considera que falta
comprovação científica de que não causa mal. Mas autoriza que alimentos que
tenham sido irradiados em outros países da União Europeia sejam comercializados
em território alemão.
E o que garante que o
alimento irradiado não se torne radioativo?
"Com radiação
eletromagnética, ou seja raio-X ou raio gama, a energia [aplicada sobre o
alimento] tem de ser abaixo de 5 MeV [milhões de eletrovolts]. Acima disso, o
fóton já tem energia suficiente para bater no núcleo do átomo e tornar o
material irradiado radioativo. O cobalto-60, por exemplo, só emite duas ondas
gama: uma com 1.17 e outra com 1.33 MeV, quer dizer, muito abaixo de 5 MeV”,
diz Mastrangelo.
"Para elétrons acelerados
o limite é 10 MeV. Acima disso, esse elétron já tem energia suficiente para
desestabilizar o núcleo da amostra, e ela ficaria radioativa. Os aceleradores
já vêm regulados para não ultrapassar essa potência”, afirma.
Mastrangelo diz ainda que
o alimento não tem nenhum contato com a fonte radioativa em si, protegida por
mais de uma camada de selagem.
A Comissão Codex
Alimentarius (da FAO/OMS) estabelece os parâmetros de irradiação a que cada
grupo alimentar ou alimento pode ser submetido de acordo com a finalidade.
Assim, a dose máxima para retardar o brotamento de tubérculos é de 0,2 kGy;
para desinfestar frutas frescas, 1 kGy; e para controle de parasitas em carnes
e frutos do mar, 2 kGy.
Já a norma da Anvisa
estabelece que qualquer alimento poderá ser tratado por radiação desde que a
dose mínima absorvida seja "suficiente para alcançar a finalidade pretendida” e
a dose máxima absorvida seja inferior àquela que "comprometeria as propriedades
funcionais e/ou os atributos sensoriais [por exemplo, cor, gosto, cheiro] do
alimento”.
Questionada sobre o porquê
de doses específicas não terem sido fixadas, a exemplo de outros países, a
Anvisa afirmou que, "na ausência de parâmetros estabelecidos em regulamento
nacional podem ser adotados os padrões internacionais aceitos”.
A portaria obriga ainda
que a frase "alimento tratado por processo de irradiação” conste nos rótulos e
nos locais de exposição à venda de produtos a granel irradiados, por meio de
cartazes ou placas.
Segundo a Anvisa, o não
cumprimento das normas caracteriza infração sanitária. Já a utilização do
símbolo internacional da Radura é opcional.
ENTENDA MAIS SOBRE A
IRRADIAÇÃO DE ALIMENTOS
Para que serve?
■ Aumentar o tempo de
prateleira dos alimentos
■ Eliminar parasitas,
fungos e bactérias (mas não vírus) que contribuem para deterioração e doenças
(por exemplo, Salmonela spp, Listeria spp, Escherichia coli, Campylobacter spp,
Trichinella spiralis spp)
■ Retardar o amadurecimento
e senescência de frutas e legumes
■ Inibição do brotamento de
tubérculos e bulbos
■ Redução de compostos
tóxicos, incluindo alergênicos, N-nitrosaminas voláteis (cancerígenas), aminas
biogênicas, gossipol (embriotóxico) e outros
■ Pode ser uma exigência em
acordos bilaterais de exportação, com o fim de evitar a disseminação de pragas
estrangeiras a outros países
Todo alimento pode ser
irradiado?
Não. Alimentos ricos em
gordura (por exemplo, castanha do pará e manteiga) não devem ser irradiados por
comprometimento do paladar e possível formação de substâncias nocivas.
Quais são os riscos e
efeitos adversos?
■ Radicais podem produzir
componentes indesejados, destruir nutrientes e alterar funcionalidade de
vitaminas, carboidratos, proteínas e lipídeos
■ Doses acima do
recomendado ou em determinados alimentos podem gerar alterações de cheiro e de
sabor, ranço e limo
■ Não há método único para
detecção de alimentos irradiados
■ Regulamentação brasileira
não fixa com números as doses máximas e mínimas permitidas.
Quem utiliza?
Mais de 55 países, sendo
26 deles em escala comercial.
Desses 26: Brasil
(desinfestação de especiarias e vegetais desidratados), EUA, China, África do
Sul, Ucrânia, Vietnã, Bélgica, Alemanha, França, Japão e outros.
Em 2013, foram 500.000
toneladas de alimentos irradiados, sendo:
40% na China
20% nos EUA
13% no Vietnã
8% no México
19% no restante do mundo
Regulamentação no mundo
A Codex Alimentarius
Commission, com base em Roma, estabelece os padrões para irradiação de
alimentos.
Regulamentação no Brasil
A Resolução número 21, de
26/1/01, da Anvisa, estipula que:
■ A dose mínima absorvida seja suficiente para
atingir a finalidade e a dose máxima seja inferior à que comprometeria as
propriedades funcionais ou atributos sensoriais do alimento
■ Rótulo deve conter a
inscrição "alimento tratado por processo de irradiação”
■ Instalações de irradiação
devem ser autorizadas e inspecionadas pelo CNEN
O símbolo da Radura é
utilizado internacionalmente para identificar os alimentos irradiados.
Outros usos de irradiação
■ Tratamento de lixo
industrial e hospitalar
■ Tratamento de sangue e
derivados
■ Esterilização de
equipamentos e instrumentos médicos, farmacêuticos e hospitalares
■ Esterilização de tecidos
biológicos
■ Desinfestação e
preservação de obras de arte e livros
■ Beneficiamento de pedras
preciosas
Fontes: Ipen, Cena, OMS, Anvisa., AIEA