Na pele da tilápia
Material biológico já conhecido para o tratamento de queimaduras começa a ser usado em cirurgias ginecológicas
Fonte: Revista FAPESP
O Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher da Universidade Estadual de Campinas (Caism-Unicamp) foi palco de um procedimento experimental inédito no fim de abril. Pela primeira vez, cirurgiões usaram pele de tilápia-do-nilo (Oreochromis nicoticus) na reconstrução do canal vaginal de uma paciente transexual que havia se submetido, anos atrás, a uma malsucedida cirurgia de redesignação sexual, passando de homem a mulher. O procedimento é fruto de uma extensa pesquisa sobre o uso da pele de tilápia para finalidades médicas iniciada há quatro anos no Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos da Universidade Federal do Ceará (NPDM-UFC), em parceria com o Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ), de Fortaleza.A paciente trans, cuja identidade foi preservada, procurou a equipe do cirurgião Leonardo Bezerra, do Departamento de Saúde Materno-Infantil da UFC, após saber dos bons resultados do uso de pele do peixe na reconstrução vaginal – técnica conhecida como neovagina – de 10 mulheres portadoras de um raro distúrbio congênito, a síndrome de Mayer-Rokitansky-Kuster-Hauser, que as faz nascer sem o canal vaginal ou com ele pouco desenvolvido. A mesma equipe já havia operado com êxito uma mulher que teve de reconstruir a vagina por causa de sequelas de um câncer ginecológico.
"A opção que a paciente trans tinha era fazer um autoenxerto com segmento de intestino, uma cirurgia extremamente agressiva, demorada e com complicações a longo prazo”, diz Bezerra. "O uso da pele de tilápia permite uma operação mais simples, rápida e menos invasiva. O epitélio da pele de tilápia funciona como arcabouço e suporte para o desenvolvimento do epitélio vaginal, com elasticidade, dimensão e funcionalidade adequadas.”
Tanto na cirurgia feita na Unicamp quanto nas realizadas no Ceará, nas mulheres com a síndrome de Rokitansky, as pacientes ficam cerca de uma semana com um molde acrílico envolto na pele de tilápia dentro do canal vaginal. Depois a prótese é retirada e a pele do peixe deixada no local. "O colágeno (da pele da tilápia) vai sendo destruído, as moléculas são ‘quebradas’ e a pele do animal é incorporada ao tecido. Isso faz com que células presentes no canal vaginal se diferenciem em outras, formando o epitélio vaginal”, explica o médico Manoel Odorico de Moraes, coordenador do NPDM e professor da Faculdade de Medicina da UFC. Não há necessidade de medicar os pacientes com drogas imunossupressoras, pois o material biológico não é colocado dentro da cavidade abdominal, mas na vagina, que é uma extensão da pele humana. "Até hoje não houve nenhum caso de rejeição”, diz Moraes.
A equipe cearense tem sido bastante procurada por pacientes transexuais que fizeram cirurgia de redesignação sexual de homem para mulher, com resultados insatisfatórios, pela técnica clássica, na qual se usa a pele do próprio pênis para a construção da neovagina. "Ocorre que, antes da cirurgia, elas fazem um tratamento hormonal para que o corpo adquira características femininas, o que reduz o tamanho do pênis. Com isso, sobra pouca pele de pênis e a vagina fica pouco funcional”, conta Leonardo Bezerra, da Faculdade de Medicina da UFC.
Rede de pesquisa
Moraes lidera desde 2015 a pesquisa com pele de tilápia, ao lado do cirurgião plástico Edmar Maciel, presidente do IAQ. O estudo teve início quando eles abraçaram uma ideia original do cirurgião plástico Marcelo Borges, professor da Faculdade de Medicina de Olinda (PE). Após ler uma reportagem sobre artesanato feito com pele de tilápia, Borges imaginou que poderia usar o material para tratar queimados por ser muito rico em colágeno e se tratar de um item barato – em geral, é descartado pela indústria pesqueira. O uso de curativos biológicos para tratar feridas e queimaduras não é novidade no mundo. Além da própria pele humana, disponibilizada por bancos de pele, usa-se pele de porco, entre outros materiais.
Hoje, a linha de pesquisa com a pele de tilápia tem a participação de 189 colaboradores distribuídos em sete estados e outros seis países – Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Colômbia, Guatemala e México. "Todos eles são coordenados por nosso grupo”, afirma Maciel. O material biológico é objeto de 43 projetos de pesquisa conduzidos dentro e fora do Brasil.
Além do bem-sucedido tratamento de queimados e da reconstrução de vagina, estão sendo estudados outros usos do material em procedimentos odontológicos e veterinários. "Até agora depositamos cinco pedidos de patente no Brasil e no exterior”, diz Maciel. Entre os produtos em teste, destacam-se scaffolds (suportes estruturais), biomaterial projetado para ser empregado na produção de válvulas cardíacas e telas para reparos de tendões e hérnias abdominais. "Só para scaffolds, há mais de uma dúzia de possíveis empregos diferentes”, informa o cirurgião plástico.
O material biológico utilizado pelos pesquisadores é fornecido pelo banco de peles de tilápia da UFC, construído pela empresa Biotec Solução Ambiental com patrocínio da Enel, distribuidora de energia elétrica no Ceará. Pioneiro no Brasil, o banco atualmente é mantido com apoio do Centro Universitário Christus (Unichristus), instituição privada de ensino superior de Fortaleza. As peles, provenientes de peixes criados em tanques de água doce, são doadas pela empresa de pescados Bomar, de Itarema, no litoral cearense.
Antes da aplicação nos pacientes, o material passa por um rigoroso processo de limpeza, descontaminação e esterilização nos laboratórios da UFC (ver infográfico). No Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), em São Paulo, as peles são submetidas a radioesterilização em um irradiador industrial multipropósito, construído pelo Ipen com auxílio da FAPESP. A lavagem e a esterilização retiram qualquer resquício de odor do material, embora mantenha o desenho característico da pele do peixe. Antes da liberação para uso clínico, as peles passam por testes de qualidade microbiológicos, histológicos e de toxicidade celular.
Cicatrização mais rápida
De acordo com Odorico Moraes, entre os 300 pacientes tratados para queimadura até hoje, 30 deles crianças, não houve nenhum caso de infecção. O Ministério da Saúde está estudando a inclusão da pele de tilápia no tratamento de queimados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Em geral, a terapia para queimaduras é feita com sulfadiazina de prata, uma pomada antimicrobiana e cicatrizante, sendo que os curativos usados exigem troca diária. Os feitos com pele de tilápia podem ser substituídos em intervalos de tempo maiores, poupando o incômodo para o paciente, material e mão de obra hospitalar. Os médicos e pesquisadores relatam redução de custos, diminuição no tempo de cicatrização e de dor com o curativo biológico.
O possível efeito analgésico interessou a um grupo de doutorandos de periodontia da Faculdade de Odontologia de Bauru da Universidade de São Paulo (FOB-USP). Eles desenvolvem um estudo-piloto para o uso do curativo biológico em procedimentos cirúrgicos periodontais, que envolvem os tecidos de proteção e suporte dos dentes, como gengiva e osso. "Estamos bem animados e a expectativa é alta com relação à possibilidade de tirar a dor do paciente”, declara Gustavo Manfredi, doutorando da FOB.
Uma aplicação inusitada ocorreu no exterior. Após tomar conhecimento da pesquisa no Brasil, a veterinária Jamie Peyton, da Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos, usou a pele de tilápia para tratar de dois ursos e um leão-da-montanha feridos em incêndios florestais na Califórnia. Segundo informações da universidade, os ursos começaram a andar logo após a aplicação do curativo biológico nas patas feridas, sugerindo um efeito imediato na melhora da dor. Um dos ursos acabou comendo a nova pele, mas a rápida recuperação surpreendeu os veterinários americanos.
Outro experimento envolvendo a pele de tilápia deverá ocorrer com o envio de amostras ao espaço em um foguete, em junho deste ano. A ideia partiu do Clube de Astronomia Louis Cruls, de Campos dos Goytacazes, no norte fluminense, participante do projeto Cubos no Espaço, que tem parceria da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos. "Vamos analisar se a estrutura molecular e as proteínas da pele de tilápia, em especial o colágeno tipo 1, sofrerão alterações após ficar na estratosfera, sob baixa pressão e intensa radiação”, conta o médico Edmar Maciel, do IAQ.
Com relação à cirurgia realizada na paciente transexual em Campinas, que passava bem em meados de maio, a expectativa é verificar se a pele da tilápia vai mesmo se transformar em epitélio vaginal. "Não se sabe se a transformação desse tecido vai ocorrer do mesmo modo como nas mulheres com síndrome de Rokitansky”, diz o ginecologista da Unicamp Luiz Gustavo Oliveira Brito, que participou da operação.
"A cirurgia não é nova, mas o material é diferente”, ressalta. Em outros lugares, afirma, usa-se membrana amniótica (da placenta) ou material sintético, feito de látex. Ele acredita, no entanto, que, se houver uma empresa interessada, a pele de tilápia poderá ser uma boa alternativa. "Tudo depende da viabilidade do produto.” Brito, Bezerra e equipe trabalham em um artigo científico relatando o caso, que será submetido para publicação no segundo semestre.
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